O Chamado da Terra
Tudo começou numa tarde cinzenta de terça-feira, entre um gole de café e a rotina sufocante de um escritório em São Paulo. "Você vai ver... um dia vou estar criando galinhas no campo!", brinquei com um colega, ainda com meu crachá de funcionário pendurado no peito. Ele riu, duvidando do trabalhador metropolitano que eu era. Mas aquela risada ecoou em mim como um chamado.
Ali, entre planilhas e reuniões, uma semente foi plantada. Por que continuar nesta vida que, apesar de pagar as contas, me deixava vazio? Sem família para me prender à cidade, eu era um homem livre para recomeçar. E foi assim que, num impulso que alguns chamariam de loucura, decidi ouvir o sussurro da terra me chamando.
Dois anos de busca intensa se seguiram. Percorri o litoral norte de minha infância, , mas seus verões caóticos não combinavam com a paz que buscava. Foi no Vale do Paraíba, no limiar entre a serra e o mar, que o destino me esperava. Cansado de tantas propriedades visitadas, quase desisti - até que um anúncio surgiu como revelação: "Deslumbrante sítio em meio à Mata Atlântica..."
O clique foi imediato. Em quinze minutos, marcamos a visita. E ao pisar naquelas terras abandonadas, soube. Como dizem os velhos navegantes sobre encontrar o barco perfeito: "é quando você entra e sente que chegou em casa". Oito anos de abandono não escondiam a magia do lugar - o ar puro carregado de cheiro de terra molhada, o silêncio quebrado apenas pelo murmúrio do vento nas copas das árvores, a vista que roubava o fôlego.
Trouxe minha mãe e avó como últimas testemunhas de minha sanidade. Minha avó centenária sentou-se num tronco caído, observando calmamente enquanto minha mãe percorria o terreno. Quando ela voltou, seu sorriso disse tudo - ou éramos três loucos juntos.
Um mês depois, assinava a escritura do que viria a ser o Sítio Sábio Sabiá. O gado que pastava onde hoje é minha varanda já se foi, mas a sensação de ter ganho na loteria persiste - não pelo preço, mas por cada amanhecer que me prova: seguir o coração foi a única planilha que valia a pena fechar.
As primeiras fotos (Março de 2019):




*O material que se vê no chão da cozinha e da sala é esterco bovino.
O Desafio da Chegada
A primeira batalha foi simplesmente chegar até a casa. A foto da "Entrada do Sítio" não mente: um mata-burro apodrecido, madeiras vergadas pelo tempo e pela chuva, era apenas o primeiro de três obstáculos ao longo dos duzentos metros que me separavam do meu futuro.
Naqueles dias iniciais, o ritual era sempre o mesmo: estacionava o carro na entrada, carregava nas costas ferramentas, máquinas e esperanças, percorria a trilha a pé – só para, ao pôr do sol, fazer o caminho inverso, levando tudo de volta. A casa, afinal, ainda não tinha nem porta para abrigar meus sonhos, quanto menos equipamentos.
A solução veio com o ronco de um motor a diesel. Contratei uma escavadeira que, em dez dias de trabalho, transformou o caminho: elevou a via, enterrou tubos de concreto onde antes havia apenas madeira podre e garantiu que as chuvas não levariam meu acesso embora. Curiosamente, não testemunhei a metamorfose. Decidi que, entre a despedida da cidade e o compromisso definitivo com a terra, haveria uma grande aventura: dois meses de estrada, mochila nas costas e alma leve.
Quando retornei, em maio, o frio já começava a cortar o vale. Mas nada gelava minha ansiedade. A estrada estava pronta – agora eu podia dirigir até a casa, sem precisar carregar o mundo nas costas.
Só que o sítio ainda guardava seus desafios: sem luz, sem água, sem condições de pernoite. Minha casa temporária tornou-se a aconchegante Pousada Sotaque Mineiro, a meia hora dali. Durante quinze dias, fiz a ponte entre o conforto emprestado e o trabalho duro. De manhã, pegava a estrada nova, o carro agora chegando até a porta. À noite, voltava para um banho quente e um sono merecido.
Era o prelúdio perfeito: a estrada consertada foi a primeira vitória em uma guerra longa – mas cada ida e volta só aumentava a certeza de que, dessa vez, eu estava construindo algo que não precisaria ser carregado de volta ao pôr do sol.
Caminho Refundado (Maio de 2019):




A Gênese da Luz e das Águas
O sítio começava a despertar de seu longo sono. Com o caminho finalmente desimpedido, faltavam agora os elementos vitais que trariam pulsação àquelas paredes abandonadas. A rede elétrica estava em frangalhos - um esqueleto desmembrado por anos de abandono e vandalismo. Os cabos haviam sido arrancados como nervos expostos, deixando a casa em trevas permanentes. O ramal entre o transformador e o poste padrão estava seccionado, um corte limpo que isolava a propriedade do mundo moderno.
Foi então que o acaso, esse arquiteto caprichoso da vida, trouxe-me um aliado inesperado. Na pousada onde me abrigava provisoriamente, conheci um técnico eletricista - homem de mãos calejadas e paciência de sábio, que viu na minha empreitada não apenas um serviço, mas uma causa digna. Juntos, reerguemos a rede elétrica da propriedade. Optei por enterrar toda a fiação em dutos especiais - solução mais onerosa e trabalhosa, mas que preservaria a estética rústica do lugar, sem fios cruzando os ares como teias de aranha metálicas.
Quando finalmente acionamos o disjuntor após três dias de trabalho exaustivo, foi como presenciar um milagre cotidiano. Lâmpadas cintilaram à vida, tomadas passaram a zumbir discretamente, e o rádio - meu primeiro luxo - encheu o silêncio com melodias que pareciam celebrar a conquista. As ferramentas elétricas rugiram satisfeitas, prontas para a batalha contra o tempo e o descaso.
Mas a verdadeira dádiva estava nas entranhas da terra. Duas nascentes generosas corriam pela propriedade, embora apenas uma fosse aproveitada - e de maneira precária. O sistema antigo de captação era uma relíquia arqueológica: uma caixa de alvenaria que engolia folhas, sedimentos e mistérios da mata sem qualquer cerimônia. Dediquei dias a limpar o reservatório principal, escavando até encontrar a alvenaria original. Instalei uma tela grosseira na entrada do tubo de captação - barreira simples contra detritos maiores.
A natureza, em sua sabedoria silenciosa, fazia o trabalho pesado. A inclinação natural do terreno permitia que a água percorresse os 150 metros até a casa apenas pela força da gravidade, sem necessidade de bombas ou mecanismos complexos. Quando abri a torneira pela primeira vez e vi jorrar um filete límpido, depois turvo, e finalmente cristalino, senti uma alegria primitiva, quase infantil. As velhas tubulações, surpreendentemente, não deram um único vazamento - como se tivessem esperado pacientemente por esse renascimento.
Naquela noite, sentado à mesa sob a luz elétrica, lavando as mãos com água corrente, percebi que o sítio havia finalmente cruzado o limiar entre projeto e lar. A luz e a água - esses milagres cotidianos que a vida urbana nos faz esquecer - eram agora testemunhas silenciosas de uma conquista íntima. O coração da propriedade batia forte, alimentado por elétrons e pela dança das moléculas de H2O. E eu, finalmente, podia chamar aquele lugar de meu.
Maio de 2019:




A Metamorfose da Casa Esquecida
Minha existência no sítio começou sob uma lona de camping armada no centro da sala - um quarto improvisado onde as noites eram marcadas pelo canto noturno dos anfíbios e o balançar das árvores contra as paredes. O plano original, traçado em noites insones na cidade, previa a demolição desta construção antiga para erguer um cottage impecável. Mas as casas, como as pessoas, resistem à obsolescência.
O primeiro sinal de que meus planos estavam fadados ao fracasso veio com o inverno rigoroso. O banheiro externo - herança teimosa de uma época em que o conforto era artigo raro - transformava cada higiene noturna em provação. Saír do vapor quente do chuveiro para o ar gélido da noite era um choque que ecoava nos ossos. A solução parecia simples: "Vamos apenas fechar este lado", disse ao pedreiro, apontando para a varanda aberta que abrigava o banheiro.
Mas as construções têm sua própria alquimia. O que começou como duas paredes básicas transformou-se em uma reforma completa: alvenaria nova, instalações hidráulicas redesenhadas, portas que rangiam histórias, janelas que emoldurariam futuros amanheceres. Sem perceber, estava investindo amor e suor na casa que jurara substituir. A cada dia, a construção antiga revelava seus encantos escondidos sob camadas de abandono.
Quando retirei a barraca pela última vez, substituindo-a por uma cama verdadeira, compreendi que a casa havia me conquistado. Ela não seria demolida. Estava salvando não uma construção, mas uma história - que agora se tornaria também a minha.
Julho de 2019:


Obras no Olho do Furacão
Aceitar que a casa velha permaneceria foi o início de uma nova fase. Como um organismo vivo, ela começou a demandar cuidados: forro de madeira para conter o frio, janelas que selavam o interior do mundo exterior, fiação que serpenteava discreta pelas paredes. Minha barraca, agora recolhida, deixara no centro da sala apenas marcas no piso - testemunhas mudas do período em que eu era mais hóspede que morador.
Os desafios surgiam como ondas. Chuvas torrenciais que adiavam trabalhos por semanas, materiais que desapareciam no labirinto da cadeia de suprimentos, pedreiros que trocavam a enxada pela cidade nos fins de semana. A "simples reforma" iniciada em julho de 2019 arrastou-se até fevereiro de 2020, quando o mundo parou.
A pandemia chegou com timing de tragédia grega. Nossa casa recém-renovada, ironicamente, tornou-se o refúgio perfeito. Família reunida, isolada na serra, recebendo suprimentos como se estivéssemos em uma ilha deserta. Minha avó centenária veio, trazendo consigo a experiência e histórias de outros tempos. A obra do galpão continuou à distância, com comunicações aos gritos que ecoavam pelo vale, misturando-se aos sons da natureza reclamando seu espaço.
Fevereiro de 2020:

Chalés que Floresceram
O confinamento revelou novas necessidades. Um banheiro a mais, espaços separados, privacidade roubada pelo convívio constante. Decidimos erguer um chalé - construção rápida, discreta, que prometia alívio imediato. Mas a obra principal do galpão, já cambaleante, definhou ainda mais.
Então, em um daqueles momentos de loucura coletiva que só grandes crises provocam, cometemos o próximo ato de insanidade: "Temos recursos, vamos construir outro chalé". A equipe de obra, exausta, transformava-se semanalmente - rostos novos substituindo os antigos, cada um com seu método, seu ritmo, suas manias. O segundo chalé crescia como cogumelo após a chuva, enquanto o galpão original, projeto seminal de todo esse esforço, parecia uma piada de mau gosto que todos conhecíamos mas ninguém ousava contar.
Abril e julho de 2020:


A Ampliação Final
O ápice de nossa saga construtiva veio em outubro de 2020. Com dois chalés em andamento e o galpão quase (quase!) concluído, decidimos ampliar a casa principal. Suite, dormitório adicional, banheiro extra, garagem - a lista crescia como espuma. A construção que um dia eu jurara demolir agora engolia mais espaço, mais recursos, mais tempo.
Quando as últimas ferramentas foram guardadas em fevereiro de 2021, após vinte meses de obras ininterruptas, o silêncio que se instalou foi quase perturbador. Nenhum caminhão descarregando materiais, nenhum pedreiro assobiando no almoço, nenhuma serra elétrica cortando o ar. Apenas o vento nas folhagens e a casa - minha antiga inimiga, agora aliada - abrigando com orgulho todas as nossas histórias, nossos erros, nossas conquistas.
O sítio estava completo. E nós, de alguma forma impensável no início dessa jornada, estávamos completos nele.
Fevereiro de 2021:



